não vivo apenas de um, mas sim de muitos :$

excertos mrp

E hoje é o dia em que parei de escrever esse livro. Começei outro, agora a lápis. Com folhas novas. Foste a primeira palavra que pus no papel. Mas ainda aqui tenho a borracha... e agora vou reler. A cada dia, vou reler. E quando me fartar de te ver ali, escrito, sempre com a mesma letra, sempre com o mesmo tom de cinza, apagarte-ei e o meu livro ficará diferente. Não serás tu o título dele. Não serei eu a única personagem. E aquele ficará perdido naquela gaveta. Quando me sentir incapaz de agir pegarei nele e perceberei que todas as minhas incapacidades nada mais são que um fim de stock. Foi contigo que gastei toda a energia e toda a imaginação. Então ficarei sentada à espera que alguém escreva um livro cuja primeira palavra seja o meu nome. Nesse dia terei uma história mais bonita para contar.
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É inacreditável a forma como a nossa mente nos trama e nos envolve em mentiras. Ou entao somos nós que a envolvemos em mentiras, nas quais acabamos por acreditar. Afinal de contas, tudo é possível. Tudo aquilo que um Homem sonha é possivel... ou então não o sonharia. Ou pelo menos não acreditaria nesse sonho. É fabulosa a capacidade que o nosso ego tem de nos fazer achar que estamos no caminho certo para que façamos o que ele deseja. E é ingreme a descoberta que afinal o ego nada mais é que alguma coisa aqui dentro que nos move e nos mente, e nos faz acreditar em nós quando em nós, nada há para acreditar. E cada passo que ele nos faz julgar como certo é uma maratona no sentido oposto.
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Talvez tenha estado cega todos estes anos. Não via. Eu já sabia que não via, porém achava que tinha sido a tua luz a cegar-me. Hoje sei que apenas me roubaste o candeeiro para que de noite, quando eu escrevo, não visse tudo o que já estava mais que dito e mais que feito e repetisse com avidez cada palavra e cada beijo e cada toque. Roubaste-me o candeeiro para que eu não visse que aquelas folhas já estavam demasiado amarelas para serem publicadas. Achava que cada segundo contigo era diferente do outro e por isso eu não me apercebia que já havia feito aquilo, num desses muitos momentos. Hoje sei que cada minuto foi igual a outro minuto, que por sua vez foi uma cópia de muitos outros minutos. Diferentes foram só aqueles em que entrámos os dois. Iguais foram todos os outros, a maioria!, em que eu entrava, eu era a protagonista, e eu saía de cena sem perceber que falava com o ar, que sonhava com uma miragem, que desejava um alguém que não existia. Que não existia para mim. És demais para mim? Nao. Simplesmente não és para mim.
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Agora os volumes das nossas memorias empilham-se ao chao, cobertos de po e de teias de aranha. Os acontecimentos do meu passado contigo, escritos nesses volumes de folhas amarelas e gastas, nao têm contornos precisos, estao fumados, como se os nossos momentos tivessem sido uma simples sucessao de ilusoes, de imagens fugazes, de assuntos que nunca compreendi, ou que so compreendi em parte. Ja nao te sinto com caracteristicas precisas, para mim ja nao és nem definivel, nem real. Agora vejo-te e vejo as nossas recordaçoes como se vêem os caminhos do campo ao entardecer, quando as ombras dos choroes enganam a vista e a paisagem nao parece mais do que um sonho. É verdade que ainda hoje me alimento das historias que tu me contaste; porque a tua presença significou demasiado e a tua ausencia foi sentida como um vento de catastrofe, que me levou ao luto e me ensinou a ter medo; mas a tua sombra ja nao paira sobre mim como dantes - ha muito tempo que o meu amor por ti se entregou à morte, e foi com entusiasmo, porque ele sentia uma grande curiosidade em ver o ceu outra vez.
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'Adormeço a custo, acordo do nada, viro-me, reviro-me, primeiro o corpo depois a cabeça, os pés empurram-se um ao outro no fundo da escuridão que não suporto, por isso levanto-me, os pés tocam o chão frio e encolhem-se, vou à janela e puxo os estores devagar, primeiro uma fresta, depois duas, três, sete, doze até a luz do candeeiro da rua iluminar o quarto. (…) Com o movimento da persiana, as cortinas estremecem, solta-se o pó daninho que me sobe pelas narinas e desato a tossir, doem-me as costas, doem-me as pernas, tenho frio e sono e, por isso, volto para a cama à espera do torpor que não vem desde que voltaste para casa dela e afinal decidiste que eras mais feliz com ela do que comigo. (…) Livre e fora de jogo estou eu agora, desde que decidiste que eras mais feliz com ela do que comigo, mas tu nunca soubeste o que era ser feliz, por isso é que te foste embora, não me sais da cabeça, estúpido, idiota, odeio-te e amo-te, amo-te e odeio-te, por isso um dia destes acordo e corto o coração que é para me esquecer como dói o amor.'
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(...)Às vezes mais vale desistir do que insistir, esquecer do que querer, arrumar do que cultivar, anular do que desejar. No ar ficará para sempre a dúvida se fizemos bem, mas pelo menos temos a paz de ter feito aquilo que devia ser feito, (...).Às vezes é preciso mudar o que parece não ter solução, deitar tudo abaixo para voltar a construir do zero, bater com a porta e apanhar o último comboio no derradeiro momento e sem olhar para trás, abrir a janela e jogar tudo borda fora, queimar cartas e fotografias, esquecer a voz e o cheiro, as mãos e a cor da pele, apagar a memória sem medo de a perder para sempre, esquecer tudo, cada momento, cada minuto, cada passo e cada palavra, cada promessa e cada desilusão, atirar com tudo para dentro de uma gaveta e deitar a chave fora, ou então pedir a alguém que guarde tudo num cofre e que a seguir esqueça o segredo.Às vezes é preciso saber renunciar, não aceitar, não cooperar, não ouvir nem contemporizar, não pedir nem dar, não aceitar sem participar, sair pela porta da frente sem a fechar, pedir silêncio e paz e sossego, sem dor, sem tristeza e sem medo de partir. E partir para outro mundo, para outro lugar, mesmo quando o que mais queremos é ficar, permanecer, construir, investir, amar. Porque quem parte é quem sabe para onde vai, quem escolhe o seu caminho e mesmo que não haja caminho porque o caminho se faz a andar, o sol, o vento, o céu e o cheiro do mar são os nossos guias, a única companhia, a certeza que fizemos bem e que não podia ser de outra maneira. Quem fica, fica a ver, a pensar, a meditar, a lembrar. Até se conformar e um dia então esquecer.
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'Mas um dia destes, com ou sem cabeça, com ou sem coração, vou conseguir acordar sem pensar em ti durante três minutos e depois adormecer outra vez, sem que nada me acorde e então vou sonhar outra vez com a barraca dos tiros onde não há bonecos espalmados com um alvo no sítio do coração, mas tu, tu e ela, de carne e osso, tum, tum eu atiro e vocês morrem e a senhora que está atrás do balcão pisca o olho à Joaquina e diz-me tome lá os meninos que são o seu prémio e então eu pego nos catraios, vou direitinha às farturas empanturrar-me de sonhos e fico ali a vê-los a engordar como a Joaquina e nesse momento, entre o êxtase da gula e o absurdo da visão dos pequenos a incharem como dois balões e desapareceram pelos ares atrás da Roda Gigante, talvez nesse momento me saias da cabeça e desapareças da minha vida para sempre.'
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Esconde tudo leva o meu cheiro para casa e esconde-o dentro de uma gaveta, não deixes que ninguém saiba que te quero e te desejo, não deixes que te falem de mim, não oiças o que os outros te dizem, eles não estão no meio de nós, ninguém está no meio de nós, só nós é que estamos aqui, a vida que vivemos é a nossa vida e não a que os outros querem que seja. Vive cada minuto intensamente e no maior segredo, faz como aquele poeta que só deixou que as suas palavras fossem lidas depois de morrer, para que ninguém o julgasse ou pudesse apontar-lhe o dedo.
Guarda-me bem, perto de ti, sempre perto, mesmo que eu não te veja ou tu não me fales, estarei ali, junto de ti, como Vénus sempre atrás da lua quando o dia cai e a noite se levanta, silenciosa, altiva, celeste e discreta. Deixa-me ficar ai, ai ninguém me vê, estou protegida pela discrição da noite, pelo silêncio dos pássaros que já dormem e não nos podem denunciar. Serei uma sombra, um suspiro, um sorriso, uma festa no teu cabelo.
E a minha presença, certa e segura junto ao teu coração, vai-te trazer de volta os sons das nossas conversas, a temperatura das nossas mãos entrelaçadas uma na outra, o sabor da minha boca na tua, o meu olhar dentro do teu como se nunca tivesse partido, como se nunca mais precisasses de voltar a essa estúpida rotina que nos rege os dias e as noites, e nunca mais te sentirás uma pessoa normal, igual às outras, porque é agora que podes ser dono da tua vida e do teu coração, é agora que tudo pode acontecer de outra forma e a vida se transformar em algo que sempre sonhaste!
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'O mundo nunca é o mundo como ele é, mas apenas a soma redutora daquilo que vemos com o que conseguimos imaginar. No meu caso, vejo mais o mundo como um somatório de aberrações que preferia que não fossem verdade. Vivo quase permanentemente atormentada com a ideia que a minha vida é como um paraíso porque tenho saúde, todos aqueles que mais amo estão vivos e perto de mim, sou muito feliz com o meu trabalho e tenho os melhores amigos do mundo. (…) Mas o mundo abre-me os olhos para muitos outros mundos, em que há pessoas que não têm nem nunca tiveram metade do que tenho. E essa sensação de impotência cansa-me porque sinto que só posso ajudar as pessoas escrevendo, enchendo-lhes a vida com histórias, tornando-me uma companhia num dia de maior tristeza ou solidão. (…) É sempre mais fácil imaginar a vida do que vive-la. É sempre mais fácil e mais interessante, porque somos nós que escolhemos tudo, o tempo e o modo, a razão e o fim. Na vida, manda a realidade e ninguém pode mudar o que de facto acontece todos os dias.'
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'O que eu quero mesmo é que sejas feliz. Não sei se sabes, talvez não tenhas tido tempo para perceber que para mim sempre foi e será isso o mais importante, mesmo que a vida te leve para outros caminhos e que sem sequer voltes a cruzar-te comigo. (...) é muito mais fácil esqueceres quem foste do que tu julgas. E se habituares a viver assim, os anos vão passar a correr e quando olhares para trás, verás que aquela vida não foi a tua, foi só a que tu pensaste que era mais fácil ter. Mas não adianta falar, não adianta explicar-te o que já esqueci e que ainda não conheces, porque o que eu quero mesmo é que sejas feliz. Apesar de tudo, há um truque que te posso ensinar e como tu és como eu, também tens um coração do tamanho do mundo só que ainda está adormecido, por isso talvez isto te ajude. Só há uma maneira de uma pessoa ser mesmo feliz, sabes qual é? Não tem a ver nem com o dinheiro, nem com o sucesso, nem com a fama, nem com a realização dos nossos sonhos. Aprende-se com o tempo e descobre-se com a vida. Pratica-se todos os dias como quem reza e às vezes custa mas vale a pena. É o truque mais difícil do mundo para quem nunca o recebeu e mais fácil para quem já o teve. O truque é fazer feliz a quem se ama, como dizia o João Gilberto. O mesmo que dizia que o amor é a coisa mais triste quando se desfaz. Mas isso faz parte da vida, como a morte, como a falta de sorte, como a falta de tempo, como o medo e a vontade, como tu e como eu. E o nosso amor, aquele que o tempo, ou a vida, ou o medo, ou a falta de sorte não deixam construir, está guardado para sempre. Talvez um dia sirva para alguma coisa, para fazer feliz alguém, como eu já te fiz a ti e tu a mim, num tempo fora de todos os tempos em que eras tu que estavas comigo e não uma imagem à tua semelhança que inventaste para enganar o tempo e o mundo. Quando quiseres descansar e olhar para dentro, verás que não é assim tão difícil. Como tudo o resto, é só querer. '
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'Acredito que a verdade reside muito mais vezes no silêncio do que nas palavras, por mais belas e justas que sejam, mesmo quando voam do coração dos poetas para o coração do papel e ficam ali a dormir, à espera que alguém as apanhe. Sou de poucas conversas e prefiro falar do mundo com ironia do que dissertar sobre o que me forra a alma, porque quem me conhece consegue ler nela tudo o que precisa e além disso, sem palavras nunca há equívocos. Tenho mãos e olhos e tempo para aqueles que amo e quando se ama alguém é como se nos nascesse um néon na testa, maior e mais brilhante do que o do "Bellagio" em Las Vegas, uma luz serena, quase divina, que nenhum curto-circuito consegue apagar. (...) Tens uma docilidade igual à minha, genética, quase inconsciente, que te corre no sangue e que tentas esconder de ti própria. Às vezes consegues, és como eu, sabes disfarçar a dor, a tristeza, a solidão, a ausência, o medo e o desencanto e quando não consegues, vais-te embora e lambes as feridas em segredo até estares curada.'

Margarida Rebelo Pinto